quarta-feira, 28 de julho de 2010

UMA DOSE DE PROSA




Essas coisas de odor, cheiro forte ou música, dizem marcam muito a gente. A verdade é que ela sempre soube que o tempo poderia passar velozmente, ou até mesmo suavemente, mas o cheiro medido de cada estação ou rota do tempo, permaneceria na gaveta secreta da sua memória.
E se cumpria mais um ciclo. Acre, era quase uma criança. Assim como ela, ele pouco sabia da vida e do progresso. Suas máquinas eram um singular jipe que pelo seu cheiro forte embrenhado na pele e cabelo dos seus passageiros acenava para o mundo dos homens pensantes. Homens capazes de criar a velocidade! Pensava ela delirantemente:
_ Hei de voar com asas de ferro e esse cheiro se diluirá em nome das grandes descobertas !
Não muito além, o tempo das grandes descobertas chegou. Com ele, o vôo de asas de ferro, o caminho na linha de ferro, o ferro cortando mares, o ferro perfurando estradas, o ferro desmistificando o homem.
No Acre também há homens de ferro, que acordam, trabalham e voltam a dormir e a vida apenas se reduz a isso: homens de ferro.
Mas ela, por sua vez, diante do homem de ferro, negou os desejos que mantivera na infância, a renúncia ao cheiro do jipe em viagem e se dizia não haver suplicado o progresso:
_ Eu, não cumpro a pena dessa sina, sempre quis ser interiorana... O destino é que me trouxe para essas bandas !
Enganar o outro, pode ser possível e até a si mesmo, mas o tempo? Esse nos marca as decisões na pele, como tatuagem. Não há para onde fugir.
Do jipe hoje pouco se ouve falar. Hoje se ouve apenas o rugir dos Subarus e Pageros e Sena Madureira é o pomar de uma fazenda qualquer.
E das asas de ferro, da linha de ferro, da fumaça dos ferros na estrada ou até mesmo na farda do homem de ferro, há ainda muito longe o fino fio de lembrança da viagem de jipe do Acre.

PASSEIO BIBLIOGRÁFICO

Com Giselle Ribeiro



Não vou aqui definir a poesia apostando no afastamento do leitor. Não vou falar de métrica, formas, rimas ricas ou rimas pobres. Prefiro falar de respiração, alimento, sangue, vida.
Entender o que representa respirar, esse é o grande desafio. Olhar, perceber o que todos deixam escapar: a respiração é a poesia.
A poesia é uma casa sonora. E o que é uma casa, senão um espaço dividido entre outros espaços: sala, quartos, cozinha, banheiro, varanda e quintal. Assim é a poesia, ela é liberdade sob vários sons, porque ela ouve o mundo e o guarda em seus secretos compartimentos produzindo novas formas que serão cantadas pelo mundo e para o mundo.
Agora vem a mim, o ímpeto de crer que a poesia não é mais uma casa sonora. Ela é todo um País, com seus rios e afluentes, com suas regiões frias e quentes. E sua capital, é a Literatura.
Das visitas tantas que faço por esse País, trago em mim fotografias reveladas pelo meu olhar. Em Manoel de Barros, cidade de muitos portos ancorei meu peito esperançoso. Essa cidade tem seus encantos, um emaranhado de palavras loucas por liberdade, sigo essa trilha cada vez que uma dor bate à minha porta.
Fujo para Hilda Hilst quando o inverno se faz em mim, quando meu olho esquerdo estremece, quando o menor toque em mim, tem cor de agressão, ameaça, invasão... Corro horas sobre o asfalto quente das palavras desta cidade até chegar ao seu, e ao meu ponto extremo.
Tenho uma coleção de postais da cidade mais visitada, Carlos Drummond de Andrade. A cidade de muitos bosques e labirintos. Dos bosques mais antigos guardei as pedras no meio do caminho. Dos bosques mais modernos, trago comigo flores da primavera. Não sei exatamente o dia e a hora da colheita, mas sei que era manhã de setembro.
Há uma cidade feita só de mistérios, o ar dessa cidade já anuncia: em Clarice Lispector há brisa mansa capaz de entrar com suavidade em cada visitante e bem dentro dele formar um vendaval. E os rios de Clarice Lispector banham a mente dos visitantes para que toda a construção da novidade se faça nas idéias dos que por ela passam.
Um, dois, três, quatro ou até mesmo trinta de julho de dois mil e dez. Todos os dias é lícito repousar os olhos de contemplação nas cidades deste meu bom País. Atraco minha âncora, neste mês solar, na bela cidade Paulo Vieira, e meus olhos alucinados crescem e diminuem com a chegada em cada parada-página. Ponto turístico número dezenove: Memórial ao fim da infância e ponto turístico número trinta: Da guarda, paradas obrigatórias. Anuncia a voz do guia.
É esse o meu País, e nele há mais cidades que por hora não ouso lhes contar...

O PRIMEIRO EXERCÍCIO DA DELICADEZA




Entre tantas coisas que perdemos, uma, agora, com 40 anos, chama-me mais atenção: a perda da delicadeza. E perceber o quanto a maquinaria da vida moderna nos rouba os sentidos, e resgatar essa perda, transformando-a em ganho, novamente, tem sido o meu grande desafio.
A escalada para os 40 anos teve frentes frias e suas canículas...
Aos 36 anos, com a teoria de Pierre Weil, descobri a visão holística, ou seja, a tomada de consciência de si, do outro e do mundo. E descobri que esse era o nome dado para a prática de olhares que os artistas se permitem exercer. Por conta dessa visão, holística, as dores do mundo entram mais profundamente neles conduzindo-os a criação dos documentos histórico-literários, de linguagem peculiar.
No artista, mais precisamente, a prática da visão holística parece estar em alerta todas as horas do dia ou noite. Por isso, talvez, eu não consiga dirigir um veículo, sou sempre passageira. Sou sempre passageira de algum trem, ônibus, avião, barco. Assim, eu permaneço... E das janelas, ou no interior dos veículos, eu vejo os gestos dos humanos e as respostas do mundo: Na Avenida Bernardo Sayão, vejo operárias de uma fábrica de castanhas que todas as manhãs, bem cedo, antes de começar a jornada fazem ginástica, todas de farda azul celeste, avental e chapeuzinho em suas cabeças, já despertas para mais uma luta contra a rotina doméstica. Nelas, através da janela aberta, sinto o cheiro de mudança em nosso histórico.
Meu olhar alcança uma mulher com ama grande sombrinha que avança pelos corredores do ônibus encostando o objeto nas cabeças dos que estão já sentados. Nela, não há qualquer vestígio ou dose de preocupação com o bem-estar do outro.
Há também mulheres grávidas, senhoras e senhores que permanecem em pé nos corredores dos ônibus, enquanto os jovens, no percurso escola-casa, vestidos de pequenos deuses, confortavelmente instalados nas poltronas, brincam de jogar latas de refrigerante, garrafas de água e outros entulhos para fora do veículo, tentando alcançar os passantes das ruas por onde o ônibus circula. E um sopro de Drummond toma conta da minha cabeça:
“Chega um tempo em que não se diz mais : meu Deus. / Tempo de absoluta depuração. / Tempo em que não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. / E as mãos tecem apenas o rude trabalho. / E o coração está seco (...)”.
Meu coração se inquieta, não quero tecer, apenas, o rude trabalho, tampouco me manter sem a ressonância do amor, sem a alegria do enternecimento na vida de algumas pessoas, as pessoas que amo, nelas eu quero manter, ainda que soframos longas invernadas e verões intensos, ainda assim, quero manter, entre nós, o exercício da delicadeza. Poder dizer “bom-dia”, “obrigada”, “por favor”, com toda a verdade da expressão dita. Poder conversar com elas com respeito mútuo em um diálogo não só com palavras, mas com toques, olhares e breves silêncios. Assim tenho aprendido, pelos fios da minha vida em terapia, com a Dra. Sâmia Rodrigues.
Ainda com 36 anos, na pós-graduação, descobri que não bastava ter consciência dos acontecimentos daninhos para nós humanos ou para o mundo. Era preciso ir um pouco mais além, era preciso acordar a nossa sensibilidade encarcerada pela revolução industrial. Era preciso eclodir a doçura dos nossos dias, para não tecermos apenas o rude trabalho. E, com 40 anos, enquanto educadora, tenho longos braços para acolher os aprendizes que se dispõem à retomada da sensibilidade, contudo, tenho, também, mãos firmes para alcançar os que tomam a direção contrária.
O fôlego, a energia recomposta no plano profissional foram marcados em mim por Ludetana Araújo, com os recursos de artesã, refazendo o sol em cada fresta do momento mágico de ensino-aprendizagem.
Dois homens distintos, Benoni e Paulo Vieira, me indicam o bom caminho para a travessia dos obstáculos, apontando um farol: a literatura. Eles não sabem, com eles percebi que é possível respirar e transpirar poesia. Benoni, burocrata, contador na luz do dia, mas entre uma sombra e outra, faz a sua aposta em um raro poema. Paulo Vieira, de dia engenheiro florestal, e, entre uma árvore e outra, preserva as espécies de poemas quase extintos. Eis dois homens distintos fazendo gerar energia literária em mim. Sem a menor consciência da profundidade dos seus atos poéticos.
É possível crer em pouquíssimas coisas em tempos modernos. É possível deixar para trás atitudes nobres em nome do lucro, da força das máquinas, da bolsa de valores e de muitos outros metais brutos, no entanto, ainda que eu não caiba nos novos valores, a voz de Freud me conforta: “Seja qual for o caminho que eu escolher,um poeta já passou por ele antes de mim” ou ainda lembrando Nietzsche “A arte assume acessoriamente a tarefa de conservar o ser, até mesmo de dar um pouco de cor a representações extintas e empalidecidas, quando cumpre essa tarefa, tece um laço em volta de diferentes séculos e faz reaparecer os espíritos [...], mas pelo menos por instantes desperta mais uma vez o velho sentimento e o coração bate a uma cadência de outro modo esquecida.”
Por isso, não imagino a existência de uma porta que a literatura não possa bater, não imagino a existência de uma mesa que não possa servir literatura aos que dela têm fome. Não imagino a existência de um só jardim onde a literatura não possa germinar.
Imagino sim, que ainda há emoção para sentir e ouvido para ouvir o enorme ruído da literatura mudando o homem.
Eis o meu primeiro exercício da delicadeza: “Nenhum homem é uma ilha em si mesmo, todos os homens são um pedaço do Continente, uma parte do Todo; pois se uma parcela de terreno é arrebatada pelo mar, a Europa é lesada; mesmo que se tratasse de uma Morada de teus amigos ou do teu próprio eu... a morte de todo homem me diminui porque faço parte do Gênero Humano. Portanto, não perguntes jamais por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.”