quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

SOLUÇÕES PARA BORDADOS E COSTURAS


"..., com o teu falo
eu me calo." (1)


Passado o tempo do bordado e da costura, elas iam para os seus quartos servir aos seus Senhores, e os gozos eram mais roucos, mais graves, muito mais másculos. Às mulheres eram destinadas, apenas, alguns pequenos gritos, vindos de um dedo furado quando costuravam sem dedal.

"A mãe faz tricô
O filho vai à guerra
Tudo muito natural acha a mãe
E o pai que faz o pai?
Negocia..." (2)

Essa é a fotografia escrita da época de um poeta chamado Jacques Prévert (1900-1977), mais um poeta francês comprometido com as denúncias. Mais um olho que tudo vê e registra a separação da raça humana.
"Tudo muito natural acha a mãe". A presença do artigo definido, marca aquela mãe e, deixa outras do lado de fora gritando por seus direitos, gritando pelo direito de também gozar de uma vida mais plena. Sem costura, sem bordado, sem dedal elas vão às ruas e acham isso "tudo muito natural".
Se os gregos, na antiguidade, celebravam o culto ao falo com hinos licenciosos preparando o caminho da liberdade de expressão literária, pois que esse caminho seja sempre lembrado para que os bordados e costuras sejam feitos de outra forma, muito mais próximos do tempo de costurar uma bela história da sexualidade humana.
Pois que esse seja o nosso destino, longe, bem longe daquela mãe que só fazia tricô, achando tudo muito natural, encontramos uma mulher grega sem dedal costurando a história que hoje queremos viver. Assim Safo de Lesbos costurava a história da nossa sexualidade:

ALÍVIO

Enfim, cara, vieste - e bem. Com
ânsia te esperava - e muito. Que
saíbas: em minha alma acendeste
um fogo que a devora. (3)

Para aquela mãe na fotografia escrita por Jacques Prévert, é como se a sexualidade fosse guardada em um fruto com uma casca protetora resistente. Então podemos dizer que a sexualidade humana estaria guardada no fruto da nogueira e a lírica de Safo e tantas outras mulheres poetas que cantavam o amor em liberdade, seria o Quebra-Nozes.
Quando a voz feminina do gozo rompe as quatro paredes e grita de prazer, ainda que as luzes estejam acesas, podemos dizer que a lírica Quebra-Nozes tem assim, o seu momento de repouso e de direito. E é quando damos à Afrodite, o que é de Afrodite.








1. 69./ Giselle Ribeiro - Belém, 2009
2. Poemas / Jacques Prévert: introdução, seleção dos poemas e tradução de Silviano Santiago. - Rio de Janeiro: Nova Fronteria.
3. Safo de Lesbos / Tradução direta do grego de Pedro Alvim. - São Paulo: Ars Poetica, 1992.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

QUANTOS SEGREDOS TEM MEU NOME?



A mãe conta histórias da vida real ao seu filho mais novo. Juntos, sentados na velha cadeira de balanço, ela lhe fala do dia de trabalho que teve e das conversas que por lá ouviu. O filho sempre escutando atentamente, até que um fato tira a paz do diálogo e do balançar da cadeira.
A mãe teria escutado a amiga chamá-lo de Meia Nove. Impaciente ele, que já havia ouvido esse apelido em outras histórias das amigas da mãe, arrebatou em um desânimo quase infinito:
— Mãe, pede paras as tuas amigas me chamarem pelo meu nome. Diz mãe, que o meu nome é Sessenta e Nove. Eu não sou Meia Nove. Repete, se preciso for, Sessenta e Nove vezes o meu nome para elas, mãe. E diz também para elas que eu sou feliz com esse nome que os teus poemas me trouxeram. É assim que está escrito no meu registro e é assim que eu quero ser chamado, Sessenta e Nove. E é assim que tem que ser.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

PONHA O OUVIDO PARA OUVIR




“Se treinamos nossa consciência, ela beija enquanto nos morde.”


Não, não foi em vão que Freud disse: “Seja qual for o caminho que eu escolher, um poeta já passou por ele antes de mim” ou lembrando Nietzsche: “A arte assume acessoriamente a tarefa de conservar o ser, até mesmo de dar um pouco de cor a representações extintas e empalidecidas, quando cumpre essa tarefa, tece um laço em volta de diferentes séculos e faz reaparecer os espíritos [...], mas pelo menos por instantes desperta mais uma vez o velho sentimento e o coração bate a uma cadência de outro modo esquecida.”
E acreditando no que foi dito, podemos dizer que a literatura não tem fronteiras, nela cabe o ser na sua totalidade: social, psicológica, moral, religiosa entre tantos outros aspectos.
Quanto a mim, não imagino a existência de uma porta que a literatura não possa bater. Não imagino a existência de uma mesa que não possa servir literatura aos que dela têm fome. Não imagino a existência de um só jardim onde a literatura não possa germinar.
Imagino sim, que ainda há emoção para sentir, e ouvidos para ouvir o enorme ruído da literatura mudando o homem.
E apesar de tantos esforços em tentar fugir, a literatura nos pega em uma das esquinas desta vida e nos diz da cegueira branca da qual, em tempos de pós-modernidade, somos prisioneiros por vontade, e estupidamente abatidos nos deixamos levar por ela, como nos prevenia o mago Saramago.
Mas se, por acaso, ou destino, fizermos da literatura uma aliada e a ela nos permitimos a total entrega, Cléo Busatto anuncia o próximo ato, quando as cortinas não mais se fecham e a cegueira se faz curada, a literatura, diz Busatto: "Acaricia e acolhe. Quando se leva a palavra para ouvintes disponíveis a recebê-la, ela se torna palavra-força."

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. p.65, 2005
_______________________. Humano, Demasiadamente Humano. p.126.
BUSATTO, Cléo. Práticas de oralidade na sala de aula. .p.16, 2010.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

UM, DOIS, TRÊS, QUATRO, UM DOIS, TRÊS, 43



Passado todo esse tempo, não desconheço a diferença entre o ser e o estar. To be or not be? E para mim não tem “ou”, porque eu sei onde eu estou e sei quem eu sou. Mas em mim doeu bastante esse aprendizado.
Trocar as roupas da pele pelas roupas da alma, pode ser coisa de louco, pode ser só um momento, mas ainda assim vou sendo louca sem escalas em cidades vizinhas da normalidade, para que seja um momento, mas um longo momento de conhecimento, de aprendizagem do que pede e quer ser a minha vida.
Mulher de 43 anos, estatura poética razoável, olhos cor de mel de abelha sem ferrão, fôlego de gato manso e um apetite de paz invejável.
Apaixonada por escritas tortas, casada e grávida de gêmeos...
Eu fui assim ontem, quando tinha quarenta e dois anos. E sou assim também hoje, nesse começo de quarenta e três anos. E fico feliz com o que ganhei hoje, a certeza de uma esticadinha na pausa da minha vida.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

MUITOS PRATICAM ESPORTE, EU PRATICO AFETO




Quem olha para fora sonha. Quem olha para dentro acorda. C.G.Jung

Fiquei muito tempo sem contato com o admirável mundo do psicólogo Carl Gustav Jung, o homem que me fez descobrir que dentro de mim tem lama e ouro.
Perdi muito tempo da minha vida não me conhecendo, mas as pedras de ouro que estão dentro de mim, começaram a ser garimpadas e lapidadas. E para tanto, precisei de algumas lições de Jung e de alguns sopros de sensatez e profissionalismo da Dra. Sâmia Rodrigues, psicóloga que me atende e me vê com o peso e a medida do ouro e da lama que o meu interior tem.
E foi assim que eu descobri que no fundo de tanta lama, escondia também algumas pedras de ouro, e eu trouxe, só depois de tanto tempo, as pedras de ouro para a superfície da lama.
Como fazer o ouro flutuar sobre a lama?
Esse é o meu mais novo segredo.
Muitos vão às academias cultuar o corpo do outro para tentar agradar sendo igual ao outro, pois que olham para fora e por isso, sonham sempre ser o que o outro, possivelmente, é na sua superfície.
Mas eu segui as linhas tortas desse princípio, entrei na contramão, e enquanto muitos praticam algum esporte, eu pratico afeto. Meu lado mais tendencioso é o da emoção, perdidamente descompensado da razão. Foi o diagnóstico da lama para o ouro.
E quando abri os olhos dentro de mim, eu adquiri o estranho hábito de cultuar a anima. Por isso pratico afeto, porque o afeto para mim é alimento que me fortalece enquanto pessoa, enquanto humana, enquanto mulher.
E foi assim que eu comecei a abrir e fechar os braços sempre que eu encontro quem amo. Eu sei abraçar tanto quanto o garimpeiro sabe garimpar. E reaprendi a lição de Jung. Hoje reconheço o belo de longe e emprestando os versos de Safo de Lesbos, posso até dizer:

Quem é belo
é belo aos olhos
- e basta.

Mas quem é bom
é subitamente belo.

domingo, 17 de outubro de 2010

DOS PERIGOS DA INUNDAÇÃO



Submersa. Coberta pelo mar da alegria. Vez por outra ria, em um só galope, para fugir do dever do discurso público.
Falar de amor pode doer, porque os desafetos, de outrora, não são apagados depois das tempestades. Eles ficam ali, em um outro canto, guardados, anunciando que a vida é um ciclo. Mas a alegria, em mim, prende o fôlego, com a mesma medida da tristeza. Eu sou dos extremos.
E a verdade é que eu fui parar naquela cena sem perceber o papel que me cabia. Por isso fui vestida de outra, não aquela dos cinco dias úteis da semana, não aquela que professa as teorias e fórmulas mágicas dos signos e seus significados, mas aquela que é só mulher e, que por isso, deságua nos encantos do amor.
Treze horas do dia quatorze, com intenções de vir a ser o dia quinze de outubro, a invasão das ondas mornas, já quase quentes de alegria tomavam conta desta mulher desprevenida, a mulher que por hora sou eu.
E ali estava acreditando ser só destinatária dos prazeres e dos rumores de aprendizes encantados pelas fórmulas secretas que o estudo da linguagem lhes oferecia. E apesar das braçadas que com avidez eu dava, aquelas ondas antes mornas, agora quentes me levavam ao fundo das alegrias aquosas do dia e só mesmo o chamado para o discurso público me fazia sufocar, perder o fôlego, rouquejar.
Trazida ao litoral, esqueço que jamais aprendi a nadar.
Dezoito horas e trinta minutos, as ondas voltam a bater sobre meu coração me arrastando novamente para as profundezas do que sou nos cinco dias úteis.
Sobre a minha mesa, uma rosa e um cartão escrito: Para o dia dos professores: um abraço um pouquinho demorado. Volto a me inundar na feliz alegria da profissão escolhida.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

DE NEGRUME O BESOURO BRILHA


Eu ouvi dizer que nos Estados Unidos tem homem-bomba. Eu ouvi dizer que pregos, bolinhas de ferro e pedaços de vidro são embalados junto com a massa explosiva e formam o modelo da jaqueta do homem-bomba. Eu ouvi dizer que a hemorragia causada pelos estilhaços mata mais que o impacto da explosão de um homem-bomba. Eu ouvi dizer que um homem-bomba acredita que está fazendo a coisa certa. Eu ouvi dizer que o homem-bomba pensa que veio ao mundo para limpar a terra da sujeira humana. Eu ouvi dizer que o homem-bomba avança contra a linha de batalha do inimigo. Eu ouvi dizer que os Estados Unidos são os principais fabricantes do C-4, o explosivo plástico que o homem-bomba veste em seu desfile final. Eu ouvi dizer que um homem-bomba consegue ferir pessoas em um raio de até duzentos metros. Eu ouvi dizer que o homem-bomba é também suicida, diz adeus em meio à multidão e saí da linha da vida. E de negrume o besouro brilha...
Eu ouvi dizer que na cidade de Feliz Lusitânia tem homem-poesia. Eu ouvi dizer que de dentro da sua jaqueta saem lesmas, saem facas de duas pontas, pescoço de galo esticado e um osso emendado. Saem ruas sem cor ou corola. Eu ouvi dizer que ele tem olho que tudo vê e quando morde, morde sem dente para a dor se fingir de não doer. Eu ouvi dizer que sendo manhã, noite ou tarde ele escreve para além do que lhe arde. E de dentro da sua jaqueta explode um grito, grito de não matar. Um grito que mais parece, um grito de acordar.

domingo, 3 de outubro de 2010

MAIS UM FILHO DE LAERTE



Dançávamos juntos a noite toda. Eu com meu vestido azul royal, cabelos ao longo das costas seminuas . Ele, com seu ar desconhecido por mim, trajava um smoking e sempre que me fazia girar no salão, a sua mão percorria as minhas costas repetidamente e com suavidade. Era como se ele soubesse que eu já fazia parte dele e quisesse me fazer entendê-lo como tal.
Todas as músicas pareciam ter a mesma nota e a sua mão persistia no pouso e repouso sobre a pele seminua das minhas costas. E do ir e vir que a sua mão fazia, ele tatuou na minha pele uma desconhecida identidade.
Fim do baile. Ele não se fazia mais matéria.
Invisível aos olhos, ele percorria todos os espaços dentro de mim e me dizia para acompanhar agora, a dimensão épica do meu novo enredo. Dar alguns passos ao alcance da espada e armadura, era a ordem dele agora querendo também ser minha.
Avanço montada em um enorme cavalo de madeira. Hoje eu sou Ulisses...

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

NEM ULISSES, NEM AQUILES.




Baseado em fatos reais, eu não nasci para ser o herói da minha história. Vez por outra, acordo na companhia de uma enorme sombra. Quando me viro, lá está ela, bem atrás de mim. E outras vezes, ela avança à minha frente. Apesar de se mostrar menor que eu, quando se põe à minha frente, eu sei que ela se faz pequena na superfície, e para além do que vejo, reconheço a sua textura. A sua substância primeira é o Medo, grande condutor do enredo dessa minha história.
E como ter feitos grandiosos, ser astuto se essa sombra, por vezes, se instala também dentro de mim?
O herói conhece o perigo e avança contra ele. E o resultado desse confronto lhe trará o bem-estar interior e os dias nublados lhe darão o verão e a primavera.
Baseado em fatos reais, eu conheço muito bem os dias de invernada e me acostumo facilmente com eles.

Eu não nasci para ser o herói da minha história.

domingo, 22 de agosto de 2010

CHECK-IN



Eu ando grávida de outros mundos,
de outras cidades,
de outras regiões
que não seja esta.
Esta que mastiga vorazmente
toda e qualquer delicadeza.
Esta que se perdeu dos valores
que marcam a existência humana.
Esta que distorce o que de fato viemos fazer
dentro deste imenso planeta.
Eu ando grávida da beleza
nos gestos dos que vivem em outros estados.
Eu ando grávida da cor da paisagem das outras regiões.
Eu ando grávida dos tons sonoros das vozes
dos que vivem em outras cidades que não seja esta.
Eu ando grávida dos que sabem lidar com os passantes
e respeitam as suas diferenças, os seus sotaques,
as suas dúvidas de localização.

Eu ando grávida de tudo o que deveria nos alimentar dia após dia:
Delicadeza,
Leveza,
Respeito,
Beleza,
Sutileza,
Bondade,
Montanhas,
Cachoeiras,
Ruas sinalizadas
Educação no trânsito,
nos restaurantes,
nos supermercados,
nos hotéis,
nas farmácias,
nas praças públicas...

Eu ando grávida de tudo o que me fez muito bem no meu tempo de viagem.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

UMA DOSE DE PROSA




Essas coisas de odor, cheiro forte ou música, dizem marcam muito a gente. A verdade é que ela sempre soube que o tempo poderia passar velozmente, ou até mesmo suavemente, mas o cheiro medido de cada estação ou rota do tempo, permaneceria na gaveta secreta da sua memória.
E se cumpria mais um ciclo. Acre, era quase uma criança. Assim como ela, ele pouco sabia da vida e do progresso. Suas máquinas eram um singular jipe que pelo seu cheiro forte embrenhado na pele e cabelo dos seus passageiros acenava para o mundo dos homens pensantes. Homens capazes de criar a velocidade! Pensava ela delirantemente:
_ Hei de voar com asas de ferro e esse cheiro se diluirá em nome das grandes descobertas !
Não muito além, o tempo das grandes descobertas chegou. Com ele, o vôo de asas de ferro, o caminho na linha de ferro, o ferro cortando mares, o ferro perfurando estradas, o ferro desmistificando o homem.
No Acre também há homens de ferro, que acordam, trabalham e voltam a dormir e a vida apenas se reduz a isso: homens de ferro.
Mas ela, por sua vez, diante do homem de ferro, negou os desejos que mantivera na infância, a renúncia ao cheiro do jipe em viagem e se dizia não haver suplicado o progresso:
_ Eu, não cumpro a pena dessa sina, sempre quis ser interiorana... O destino é que me trouxe para essas bandas !
Enganar o outro, pode ser possível e até a si mesmo, mas o tempo? Esse nos marca as decisões na pele, como tatuagem. Não há para onde fugir.
Do jipe hoje pouco se ouve falar. Hoje se ouve apenas o rugir dos Subarus e Pageros e Sena Madureira é o pomar de uma fazenda qualquer.
E das asas de ferro, da linha de ferro, da fumaça dos ferros na estrada ou até mesmo na farda do homem de ferro, há ainda muito longe o fino fio de lembrança da viagem de jipe do Acre.

PASSEIO BIBLIOGRÁFICO

Com Giselle Ribeiro



Não vou aqui definir a poesia apostando no afastamento do leitor. Não vou falar de métrica, formas, rimas ricas ou rimas pobres. Prefiro falar de respiração, alimento, sangue, vida.
Entender o que representa respirar, esse é o grande desafio. Olhar, perceber o que todos deixam escapar: a respiração é a poesia.
A poesia é uma casa sonora. E o que é uma casa, senão um espaço dividido entre outros espaços: sala, quartos, cozinha, banheiro, varanda e quintal. Assim é a poesia, ela é liberdade sob vários sons, porque ela ouve o mundo e o guarda em seus secretos compartimentos produzindo novas formas que serão cantadas pelo mundo e para o mundo.
Agora vem a mim, o ímpeto de crer que a poesia não é mais uma casa sonora. Ela é todo um País, com seus rios e afluentes, com suas regiões frias e quentes. E sua capital, é a Literatura.
Das visitas tantas que faço por esse País, trago em mim fotografias reveladas pelo meu olhar. Em Manoel de Barros, cidade de muitos portos ancorei meu peito esperançoso. Essa cidade tem seus encantos, um emaranhado de palavras loucas por liberdade, sigo essa trilha cada vez que uma dor bate à minha porta.
Fujo para Hilda Hilst quando o inverno se faz em mim, quando meu olho esquerdo estremece, quando o menor toque em mim, tem cor de agressão, ameaça, invasão... Corro horas sobre o asfalto quente das palavras desta cidade até chegar ao seu, e ao meu ponto extremo.
Tenho uma coleção de postais da cidade mais visitada, Carlos Drummond de Andrade. A cidade de muitos bosques e labirintos. Dos bosques mais antigos guardei as pedras no meio do caminho. Dos bosques mais modernos, trago comigo flores da primavera. Não sei exatamente o dia e a hora da colheita, mas sei que era manhã de setembro.
Há uma cidade feita só de mistérios, o ar dessa cidade já anuncia: em Clarice Lispector há brisa mansa capaz de entrar com suavidade em cada visitante e bem dentro dele formar um vendaval. E os rios de Clarice Lispector banham a mente dos visitantes para que toda a construção da novidade se faça nas idéias dos que por ela passam.
Um, dois, três, quatro ou até mesmo trinta de julho de dois mil e dez. Todos os dias é lícito repousar os olhos de contemplação nas cidades deste meu bom País. Atraco minha âncora, neste mês solar, na bela cidade Paulo Vieira, e meus olhos alucinados crescem e diminuem com a chegada em cada parada-página. Ponto turístico número dezenove: Memórial ao fim da infância e ponto turístico número trinta: Da guarda, paradas obrigatórias. Anuncia a voz do guia.
É esse o meu País, e nele há mais cidades que por hora não ouso lhes contar...

O PRIMEIRO EXERCÍCIO DA DELICADEZA




Entre tantas coisas que perdemos, uma, agora, com 40 anos, chama-me mais atenção: a perda da delicadeza. E perceber o quanto a maquinaria da vida moderna nos rouba os sentidos, e resgatar essa perda, transformando-a em ganho, novamente, tem sido o meu grande desafio.
A escalada para os 40 anos teve frentes frias e suas canículas...
Aos 36 anos, com a teoria de Pierre Weil, descobri a visão holística, ou seja, a tomada de consciência de si, do outro e do mundo. E descobri que esse era o nome dado para a prática de olhares que os artistas se permitem exercer. Por conta dessa visão, holística, as dores do mundo entram mais profundamente neles conduzindo-os a criação dos documentos histórico-literários, de linguagem peculiar.
No artista, mais precisamente, a prática da visão holística parece estar em alerta todas as horas do dia ou noite. Por isso, talvez, eu não consiga dirigir um veículo, sou sempre passageira. Sou sempre passageira de algum trem, ônibus, avião, barco. Assim, eu permaneço... E das janelas, ou no interior dos veículos, eu vejo os gestos dos humanos e as respostas do mundo: Na Avenida Bernardo Sayão, vejo operárias de uma fábrica de castanhas que todas as manhãs, bem cedo, antes de começar a jornada fazem ginástica, todas de farda azul celeste, avental e chapeuzinho em suas cabeças, já despertas para mais uma luta contra a rotina doméstica. Nelas, através da janela aberta, sinto o cheiro de mudança em nosso histórico.
Meu olhar alcança uma mulher com ama grande sombrinha que avança pelos corredores do ônibus encostando o objeto nas cabeças dos que estão já sentados. Nela, não há qualquer vestígio ou dose de preocupação com o bem-estar do outro.
Há também mulheres grávidas, senhoras e senhores que permanecem em pé nos corredores dos ônibus, enquanto os jovens, no percurso escola-casa, vestidos de pequenos deuses, confortavelmente instalados nas poltronas, brincam de jogar latas de refrigerante, garrafas de água e outros entulhos para fora do veículo, tentando alcançar os passantes das ruas por onde o ônibus circula. E um sopro de Drummond toma conta da minha cabeça:
“Chega um tempo em que não se diz mais : meu Deus. / Tempo de absoluta depuração. / Tempo em que não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. / E as mãos tecem apenas o rude trabalho. / E o coração está seco (...)”.
Meu coração se inquieta, não quero tecer, apenas, o rude trabalho, tampouco me manter sem a ressonância do amor, sem a alegria do enternecimento na vida de algumas pessoas, as pessoas que amo, nelas eu quero manter, ainda que soframos longas invernadas e verões intensos, ainda assim, quero manter, entre nós, o exercício da delicadeza. Poder dizer “bom-dia”, “obrigada”, “por favor”, com toda a verdade da expressão dita. Poder conversar com elas com respeito mútuo em um diálogo não só com palavras, mas com toques, olhares e breves silêncios. Assim tenho aprendido, pelos fios da minha vida em terapia, com a Dra. Sâmia Rodrigues.
Ainda com 36 anos, na pós-graduação, descobri que não bastava ter consciência dos acontecimentos daninhos para nós humanos ou para o mundo. Era preciso ir um pouco mais além, era preciso acordar a nossa sensibilidade encarcerada pela revolução industrial. Era preciso eclodir a doçura dos nossos dias, para não tecermos apenas o rude trabalho. E, com 40 anos, enquanto educadora, tenho longos braços para acolher os aprendizes que se dispõem à retomada da sensibilidade, contudo, tenho, também, mãos firmes para alcançar os que tomam a direção contrária.
O fôlego, a energia recomposta no plano profissional foram marcados em mim por Ludetana Araújo, com os recursos de artesã, refazendo o sol em cada fresta do momento mágico de ensino-aprendizagem.
Dois homens distintos, Benoni e Paulo Vieira, me indicam o bom caminho para a travessia dos obstáculos, apontando um farol: a literatura. Eles não sabem, com eles percebi que é possível respirar e transpirar poesia. Benoni, burocrata, contador na luz do dia, mas entre uma sombra e outra, faz a sua aposta em um raro poema. Paulo Vieira, de dia engenheiro florestal, e, entre uma árvore e outra, preserva as espécies de poemas quase extintos. Eis dois homens distintos fazendo gerar energia literária em mim. Sem a menor consciência da profundidade dos seus atos poéticos.
É possível crer em pouquíssimas coisas em tempos modernos. É possível deixar para trás atitudes nobres em nome do lucro, da força das máquinas, da bolsa de valores e de muitos outros metais brutos, no entanto, ainda que eu não caiba nos novos valores, a voz de Freud me conforta: “Seja qual for o caminho que eu escolher,um poeta já passou por ele antes de mim” ou ainda lembrando Nietzsche “A arte assume acessoriamente a tarefa de conservar o ser, até mesmo de dar um pouco de cor a representações extintas e empalidecidas, quando cumpre essa tarefa, tece um laço em volta de diferentes séculos e faz reaparecer os espíritos [...], mas pelo menos por instantes desperta mais uma vez o velho sentimento e o coração bate a uma cadência de outro modo esquecida.”
Por isso, não imagino a existência de uma porta que a literatura não possa bater, não imagino a existência de uma mesa que não possa servir literatura aos que dela têm fome. Não imagino a existência de um só jardim onde a literatura não possa germinar.
Imagino sim, que ainda há emoção para sentir e ouvido para ouvir o enorme ruído da literatura mudando o homem.
Eis o meu primeiro exercício da delicadeza: “Nenhum homem é uma ilha em si mesmo, todos os homens são um pedaço do Continente, uma parte do Todo; pois se uma parcela de terreno é arrebatada pelo mar, a Europa é lesada; mesmo que se tratasse de uma Morada de teus amigos ou do teu próprio eu... a morte de todo homem me diminui porque faço parte do Gênero Humano. Portanto, não perguntes jamais por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.”

domingo, 2 de maio de 2010

40 GRAUS




"A cada dia que vivo, mais me convenço que o
desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que se esquivando do sofrimento, perdemos também a felicidade."
(Carlos Drummond de Andrade)

Por conta dessa certeza, chego aos 40 anos, costurando sonhos antigos... Lançando vários olhares às pessoas amadas, redescobrindo encantos para ainda, e sempre, mantê-las na minha vida.
Para chegar aos 40 anos, conheci quase todos os rostos do amor : o mais terno, o mais inquieto, o mais voluptuoso, o mais sensato. E, por saber de vivências amorosas, provei a ira, a dor, o desafeto. Tive que reaprender o outro, por força, reformular as aparências e essências, e, assim, por imposição desmedida da ira, vivi os versos de Appolinaire: “La joie venait toujours après la peine”.
Ao longo dos 40 anos, fui adquirindo novas linhas no rosto, novas espessuras na pele e minha alma também se fez mutante. Já fui mais áspera. A ira que me desestrutura é a mesma que me transforma para melhor ver o objeto de amor, e cuidar dele, vou perdendo aspereza e adquirindo delicadeza. Fiz a delicadeza entrar na minha oração poética:
Minha mãe,
não quero ser menos doçura
os homens já se amargaram
quase todos.

As palavras rudes hoje
são sempre
suas declarações de amor,
um discurso público,
uma carta endereçada
ou anônima.

Minha mãe,
não quero ser menos doçura,
prefiro tecer sozinha
os fios da minha loucura.
(RIBEIRO, 69.2007)
A delicadeza, que antes, talvez, dormisse dentro de mim, acorda com fôlego e fome para dizer dos amores que tive e quero alimentar: amor de mãe, amor de amigo, amor de irmãos, amor de amante, amor..., amor..., amor...
E com 40 anos: “Amadurecer foi retirar os rostos e as peles e começar a ver no espelho o verdadeiro eu – onde se lê uma severa contabilidade dos gastos e lucros, saldos nem sempre tranqüilizadores. Quanto de amargura, quanto de bom-humor sobrou, quanta capacidade de se renovar?” (Lya Luft,1996)
Já tive amores que me arrancaram o afeto, o respeito, a busca da serenidade para entendê-los, e, por isso, fizeram-se desamores, ex-amores, agora, doloroso desprezo. E é assim que me faço lembrar sempre e sempre a trama da ira, na escrita de Lya Luft: “Sofrer nos torna melhores”.
E eu quero ser melhor, melhor não em matéria, não em lucro fácil, não em esperteza, porque conheço essa forma de se pensar, de se imaginar melhor, mesmo não o sendo: “Eis que todos são vaidade. As suas obras não são coisa alguma; as suas imagens de fundição são vento e coisa vã” Isaías 41:29.
Hoje, com 40 anos, sou colecionadora de amores, tenho amores que escaparam da convivência, da vida dividida, da aproximação física, mas moram e fazem festa dentro de mim.
E lá, onde todas as estações passeiam, onde a vida é uma máquina acelerada, na cidade da garoa, hoje, mora Jane do Socorro Pereira, amiga de tempos muito antigos, tempos em que podíamos sentar nos bancos de praça para falar de nós e sempre trocarmos palavras de encantamentos literários: Clarice Lispector, Lygia Fagundes Teles, Carlos Drummond de Andrade. Praça do Horto, era o nosso planeta, Chá das Cinco, o nome do nosso caloroso encontro marcado.
Talvez não tão longe, na mesma cidade em que estou, cidade de duas únicas estações: verão e inverno, porém em outra rua, outra casa, mora Gilmara Menezes, fotógrafa por sensibilidade, decifradora de símbolos e dores. Cada encontro, um novo encanto. Por isso, talvez moramos em ruas distintas, para não fazer barulho excessivo em nossas almas, não acordá-las em horas indesejáveis. Há amores que pedem encontro marcado para não correr o risco de desatar o laço que nos une.
Com o mesmo tom, mora, dentro de mim, Danielle Fonseca, Elle, amiga de alma presa à minha, de voz suave, quando fala comigo, artista visual e também poeta. Temos tempestades devastadoras, talvez porque trazemos as dores do mundo, somos poetas, as duas. Mas não nos deixamos naufragar, apesar de todo o amor pelo mar e do medo que tenho dele.
Há, em mim, um amor que é feito de aprendizagem contínua e de encantamento puro: Graça Leal, por esse amor, eu pago a pena de retomar o fôlego sempre que a incompreensão no ofício profissional me abate.
Há, em mim, amores novos, amores que enchem os espaços vazios com novas formas de ler ou dizer poesia: 7 Pecadoras Poéticas, que sempre crescem e, às vezes, parecem nove: Aiana, Danielle, Gilmara, Isabel, Joseane, Lídia, Layra, Suani e Thays. Nomes, agora, gravados em mim e que me fazem cumprir o exercício da delicadeza.
Há outros nomes que não decifrei, porque, dos nomes de amor que carrego, crio sempre um novo texto, da inquietante reconstrução da convivência, que, às vezes, apavora-me, por retirar a força do encantamento e me lançar imagens distorcidas, enigmáticas para decifrar e, novamente, fazer- me enamorar...
Mas, do amor de amante, eu reservo minha fala, porque, aos amantes, foi determinada a missão de serem sempre cúmplices, senão, não seremos mais amantes.
Aos 40 anos, decifro os nomes dos grandes amores como almas cativas e, assim:
“No âmago de tudo, claramente
Eu descubro um espírito a cismar.”

Giselle RIBEIRO, 28 de outubro de 2007.