domingo, 27 de março de 2011

REGISTRO NO ARQUIVO DA HUMANIDADE




“Partir rumo ao alto-mar, na vida real ou nas histórias é um ato que causa uma sensação de nascimento salgado”(1).

RELATÓRIO DA NOITE DE ONTEM

Sempre que uma onda muito forte de emoção me invade, minha voz tem o estranho hábito da ausência e evapora, mas dentro de mim, um diálogo secreto e verdadeiro se inicia:

NOITE DO DIA VINTE E SEIS:

Mais uma vez volto ao mar. E minha jangada avança vorazmente contra o mar, o mar dos afortunados de emoção. Sigo rumo à ilha prometida: a casa da Mestre Patrícia Almeida. Lá, os marinheiros estão todos reunidos para lançar suas garrafas com a repetida mensagem:

Senhor Deus, que nos enviou sua mensageira, conduz em ondas mansas a viagem da nossa mestre Patrícia, por mais doze meses reaprendendo a união com o teu Sagrado Nome.
Daí-nos, o tempo da espera em calmaria, sabedores que no findar dos doze meses, a colheita de bons frutos do seu novo saber, por nós também será feita.

O que tem um(a) mestre a ensinar aos seus Yogues?
Pouco sabemos dizer, mas a verdade é que cada estadia ao lado de um(a) mestre, é dia de iluminação em nossos porões e nossas frestas obscuras geram cores muito mais vibrantes. E do pouco que ainda sabemos, o(a) mestre grava em nossa pele o exercício do perdão, do desapego, o exercício do amor. E assim, inspiramos e expiramos as suas lições.

Eis uma parte do meu diálogo interno do dia vinte e seis, na ilha prometida.





P.S. Texto resultado do desejo de boa viagem à Profa. Patrícia Almeida que segue para São Paulo em busca de mais aperfeiçoamento profissional.

1. Nancy Mellon. A Arte de Contar Histórias. 2006. p.96.

quinta-feira, 24 de março de 2011

ENDEREÇO DO POETA:


ENDEREÇO DO POETA: Rua das Palavras, em uma cidade que parece duas. Texto tecido para a homenagem ao Poeta Paulo Nunes no I Simpósio de Literatura Paraense.
Por Giselle Ribeiro ao poeta Paulo Nunes


ESCREVER
Ao Max Martins, homo ludens

Que menino
d e s a j e i t o u
o telhado do meu sonho?


Escrever é um poema dedicado ao Max Martins, nosso também poeta. Mas hoje eu resolvi apagar a dedicatória e libertar o poema para que ele retorne ao seu autor Paulo Nunes. Para meu ato, talvez criminoso, por tirar Max Martins do cenário, eu tenho explicações que fogem do primeiro olhar o poema. Que fogem da primeira indignação do autor Paulo Nunes, ou de qualquer outro leitor desatento.
Eu explico: Escrever é um poema grandiosamente composto por três versos com a iluminura do ponto de interrogação no seu final, que também pode ser recebido como começo, e não mais final, de outra viagem. Esse indefeso ponto de interrogação, marca a abertura da dedicatória no poema. E faz, maravilhosamente, com que o poema tenha fôlego suficiente para tantas possibilidades de leitura. Assim, eu me permito apagar o nome de Max Martins para dar vez a outro poeta, que neste momento é quem desajeita o telhado do meu sonho, e o poeta que no momento presente cumpre essa tarefa, é o próprio autor, é Paulo Nunes.
Explico mais ainda o meu crime pre(meditado) contra a dedicatória do poema Escrever, esse poema é um campo minado de abertura para uma leitura polissêmica, desde o seu título Escrever, que se lança a todo poeta. Passemos agora pela sua libertadora dedicatória, quando lança Max Martins na lista dos que escrevem com a força do homo ludens, esse homem que brinca e que joga e que por isso, também poderá dar vez a outro e outro autor.
Agora sigo em direção do título desta comunicação: Endereço do poeta: rua das palavras, em uma cidade que parece duas, é lá que mora Paulo Nunes, essa é a minha certeza, porque para saber se um homem é poeta eu consulto o seu endereço. Porque poeta não mora em rua de palavra com significado unívoco. Poeta quando nasce exige uma rua plural, uma cidade que no mínimo pareça ser duas. Porque ele sabe que veio ao mundo para acender e apagar as certezas do seu leitor.
O título desta comunicação devo dizer, surgiu da leitura e releitura do livro Em Citrial: uma história que parece duas, publicado em 1986 pela SEMEC. E quando eu digo que o endereço do poeta é Rua das palavras, em uma cidade que parece duas, eu não estou sozinha com o meu acreditar, agora relembro o que disse a também escritora paraense Maria Lúcia Medeiros na contracapa do livro citado:

“ Quem quiser perseguir linhas normativas e terminais no trabalho de Branco e Paulo Jorge não vai conseguir. As possibilidades de leitura vão muito mais além. Há leitura de ilustração, de texto e ilustração, só de texto, enfim, muitas e variadas maneiras de ler essa eterna história de amor “Em Citrial.”

P.S. Escrever, poema do livro O mosquito que engoliu o boi. Belém: Paka-Tatu,2002.

segunda-feira, 14 de março de 2011

GALERIA DA MINHA ALEGRIA

Profa. Patrícia Almeida
Poeta Manoel de Barros e Giselle Ribeiro
Profa. Patrícia Almeida e seus discípulos

Sempre vou ao mar, por isso, aprendi a nadar. O mar que eu sempre vou tem outro nome, muito mais forte e necessário. Aprendi com minha mestre em Yoga Patrícia Almeida que Deus é amor e com Jung aprendi que eu posso ser Deus. Deus é amor, eu sou amor. Esse é o meu mantra. E desde então, minha vida tem sido essa melodia de uma nota só. Minha vida tem sido esse refrão. Um mantra feito de água mole em pedra dura. E foi assim que eu me fiz mais doçura.E acho, verdadeiramente, que conheci e reconheço o rosto da felicidade amando e sendo amada sem controle, sem medidor, sem prestação de contas. Mas o novo mar veio com o rosto mais grandioso, arrisco até dizê-lo mais nobre, pois que amo sem ver cor, sexo, credo, nacionalidade... Aprendi a amar sem interesse da carne ou da matéria. Aprendi a amar a pessoa por ser Pessoa. E percebi, cantando o meu mantra, que o rio de tristeza que sempre corria em mim, se fez mar, mar de alegria. Por isso, hoje sou mais leve, sou água, sou ar entrando e saindo do pulmão da minha existência. Aprendi também com o poeta Manoel de Barros que a simplicidade tem nome de pessoa em poesia, e de poesia em pessoa, porque sabe ser só pessoa ou poesia, sem precisar de qualquer outro artefato para ser o que, de fato, é. Por isso hoje, eu também sou Pessoa que com outras Pessoas conjuga o verbo amar, com seu tempo e modo. Namasté minha amada mestre Patrícia Almeida. Saudações poéticas meu amado poeta Manoel de Barros.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

ENDEREÇO FIXO


Já faz muito tempo, devo lhes contar, que eu moro em uma Casca Protetora.
Mas o que faz uma mulher de quarenta e três anos, morar em um espaço de limites estabelecidos?
Talvez a maior das hipóteses seja: nada.
Quase absolutamente nada, é tudo o que eu faço neste pequeno espaço que até os dias de hoje eu me mantenho. E desde a infância até a mais extrema maturidade a fotografia sempre revelada é essa:

Para jogar queimada: Casca Protetora;
Para chegar e sair da escola: Casca Protetora;
Para atravessar a rua: Casca Protetora;
Para viajar sozinha: Casca Protetora;
Para sair de noite: Casca Protetora
Para dirigir automóvel: Casca Protetora;
Para viajar de barco: Casca Protetora;
Para dizer as suas dores tantas: Casca Protetora.

E quando uma parte de mim avança quebrando a Casca Protetora, uma camada mais resistente se refaz.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

RECEITA PARA DESENVOLVER A CRIATIVIDADE POÉTICA

GALERIA DE FOTOS DOS INGREDIENTES DA RECEITA:











Primeiro, atente para tudo o que o seu olho pedir para ver, do maior ao minúsculo feito. Atente também, para tudo o que o ouvido pedir para ouvir, o nariz pedir para cheirar, a língua pedir para provar, as mãos pedirem para tocar.

INGREDIENTES:

- 1 dúzia de pessoas fingindo querer aprender a falar francês;
- 1 pessoa em plena paz e com muita vontade de dividi-la com as 12 pessoas referidas;
- 1 dúzia de pessoas com simplicidade de ambiente e de vontade;
- 1 Casarão sem forro;
- Algumas gotas de chuva não muito forte, não muito fina, sobre o telhado do Casarão sem forro;
- Alguns bonecos morando no Casarão;
- 1 Caranguejo Sem Cabeça;
- 1 Bem-Amada em fuga com o Cavalo-marinho;
- 1 guardadora do Casarão;
- 1 guardador do Casarão;
- 1 desejo de fazer lenda;
- 1 desejo de fazer renga;
- 12 pessoas e mais 1 com vontade de realizar o desejo poético.

MODO DE PREPARO:

Deixe por algumas horas os ingredientes todos, dentro do Casarão dos Bonecos. Misture bem as idéias dos ingredientes. Faça cair uma chuva na cidade, não muito forte, não muito fina. Despeje tudo na máquina do não real, deixe lá até adquirir consistência. Pingue algumas gotas de renga e lenda dentro da máquina do não real, deixe agir por cinco minutos ou algumas horas. Sirva ao ouvinte ou leitor e espere a digestão.

sábado, 22 de janeiro de 2011

RENGA-LENDA DO CARANGUEJO SEM CABEÇA



Era começo de noite
no Casarão dos Bonecos...
A porta rangia
e sozinha batia
e vozes bem longínquas de crianças
por lá também se ouvia.

De dentro do quarto mais escuro
a boca dos bonecos
fechava e abria
e um som estranho
lá de dentro também saia.

Pelo barulho de chuva
dava pra imaginar
a lua no céu não estava
nem as estrelas a brilhar...
Então as vozes diminuíram
apenas a porta a bater
ouvidos e olhos atentos
queriam compreender

Um ruído nada estranho,
algo seco como arranho
mas nem tão familiar.
vinha às pressas do quintal,
som pequeno de assombrar.
pelo frio que deu na espinha,
dúvida eu não tinha,
era unha de animal.

E o assoalho de madeira a ranger
com as pegadas curtas e rápidas
de um Caranguejo que, por amor,
perdeu a cabeça
e no meio da escuridão
aprendeu a fazer
o Casarão dos Bonecos tremer.

Diz-se por lá
que ele sofreu dos males do amor,
comeu da rosa, o espinho,
pois a sua bem-amada
fez a troca que julgou certa
um Caranguejo por um Cavalo-Marinho.

Desde então,
diz a lenda,
que o Caranguejo sonha ser Escorpião
e mata todos que lá entram
com um só arranhão.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

EM DIA DE TRISTEZA MAIOR...



Ela sabe ficar a mordiscar pequenas alegrias durante os seis dias úteis da semana. E no sétimo dia, quando este vem chegando, ela se farta toda de um banquete maldoso, igual aos que não sabem ver utilidade alguma naquele dia, ela se deita e se faz toda inércia. No sétimo dia, ela é pura indolência.
E nega ter conhecimento de um outro prato no sétimo dia.
Nada de bom na tv, nem cinema, nem teatro.
A cama chama por ela e ela se lambuza toda desse prato.
E é assim que no sétimo dia ela come tristezas muito grandes, e por serem grandes levam muito tempo para serem digeridas. E ela desce até o seu porão para se fartar mais e mais de desalento, consternação, mágoa, aflição.
Com seu cardápio variado de dor desmedida, é assim que ela atravessa o sétimo dia, enquanto ele apenas anuncia:
- Em dia de tristeza maior, não desça de elevaDOR.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

EU TE PAGUEI COM MINHA ÚNICA MOEDA DE OURO



Ela conheceu Cléo nos jardins da teoria.
Primeiro ela cheirou a grama para saber se era bem cuidada. Depois ela quis invadir os coretos da praça em que o jardim se instalara, para sentir se nas paredes tinha lodo. Se tivesse lodo, seria bom para o passeio das mãos. O lodo é macio e deslizante, e assim seria a teoria das histórias tantas que pelo seu ouvido entrariam.
Castelos, reis, cavalos e armaduras, maldições e soluções... tudo deslizando como o lodo das paredes dos coretos, indo direto do ouvido ao coração. Dizia a lei do jardim das teorias da Cléo.
Foi por isso que ela se enamorou. O coração parecia mais esperançoso. Os olhos pareciam faiscar de entendimento. E havia nela, até um desejo de habitar o jardim da Cléo.
Conta a lenda que ela foi morar nos arredores do jardim de onde foi encantada e por lá fica, esperando as histórias que do corpo da Cléo deslizam mansamente, direto ao coração dela.
E foi por isso, que ela derreteu sua única moeda de ouro e transformou em aliança.
E foi também assim, que ela, Giselle Ribeiro casou com os pensamentos e atitudes literárias de Cléo Busatto. Hoje, ela dá aulas de literatura em uma universidade no Norte do país, bem distante da cidade de Cléo, mas muito próxima do pensamento e das teorias iluminadoras de Cléo Busatto.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

SOLUÇÕES PARA BORDADOS E COSTURAS


"..., com o teu falo
eu me calo." (1)


Passado o tempo do bordado e da costura, elas iam para os seus quartos servir aos seus Senhores, e os gozos eram mais roucos, mais graves, muito mais másculos. Às mulheres eram destinadas, apenas, alguns pequenos gritos, vindos de um dedo furado quando costuravam sem dedal.

"A mãe faz tricô
O filho vai à guerra
Tudo muito natural acha a mãe
E o pai que faz o pai?
Negocia..." (2)

Essa é a fotografia escrita da época de um poeta chamado Jacques Prévert (1900-1977), mais um poeta francês comprometido com as denúncias. Mais um olho que tudo vê e registra a separação da raça humana.
"Tudo muito natural acha a mãe". A presença do artigo definido, marca aquela mãe e, deixa outras do lado de fora gritando por seus direitos, gritando pelo direito de também gozar de uma vida mais plena. Sem costura, sem bordado, sem dedal elas vão às ruas e acham isso "tudo muito natural".
Se os gregos, na antiguidade, celebravam o culto ao falo com hinos licenciosos preparando o caminho da liberdade de expressão literária, pois que esse caminho seja sempre lembrado para que os bordados e costuras sejam feitos de outra forma, muito mais próximos do tempo de costurar uma bela história da sexualidade humana.
Pois que esse seja o nosso destino, longe, bem longe daquela mãe que só fazia tricô, achando tudo muito natural, encontramos uma mulher grega sem dedal costurando a história que hoje queremos viver. Assim Safo de Lesbos costurava a história da nossa sexualidade:

ALÍVIO

Enfim, cara, vieste - e bem. Com
ânsia te esperava - e muito. Que
saíbas: em minha alma acendeste
um fogo que a devora. (3)

Para aquela mãe na fotografia escrita por Jacques Prévert, é como se a sexualidade fosse guardada em um fruto com uma casca protetora resistente. Então podemos dizer que a sexualidade humana estaria guardada no fruto da nogueira e a lírica de Safo e tantas outras mulheres poetas que cantavam o amor em liberdade, seria o Quebra-Nozes.
Quando a voz feminina do gozo rompe as quatro paredes e grita de prazer, ainda que as luzes estejam acesas, podemos dizer que a lírica Quebra-Nozes tem assim, o seu momento de repouso e de direito. E é quando damos à Afrodite, o que é de Afrodite.








1. 69./ Giselle Ribeiro - Belém, 2009
2. Poemas / Jacques Prévert: introdução, seleção dos poemas e tradução de Silviano Santiago. - Rio de Janeiro: Nova Fronteria.
3. Safo de Lesbos / Tradução direta do grego de Pedro Alvim. - São Paulo: Ars Poetica, 1992.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

QUANTOS SEGREDOS TEM MEU NOME?



A mãe conta histórias da vida real ao seu filho mais novo. Juntos, sentados na velha cadeira de balanço, ela lhe fala do dia de trabalho que teve e das conversas que por lá ouviu. O filho sempre escutando atentamente, até que um fato tira a paz do diálogo e do balançar da cadeira.
A mãe teria escutado a amiga chamá-lo de Meia Nove. Impaciente ele, que já havia ouvido esse apelido em outras histórias das amigas da mãe, arrebatou em um desânimo quase infinito:
— Mãe, pede paras as tuas amigas me chamarem pelo meu nome. Diz mãe, que o meu nome é Sessenta e Nove. Eu não sou Meia Nove. Repete, se preciso for, Sessenta e Nove vezes o meu nome para elas, mãe. E diz também para elas que eu sou feliz com esse nome que os teus poemas me trouxeram. É assim que está escrito no meu registro e é assim que eu quero ser chamado, Sessenta e Nove. E é assim que tem que ser.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

PONHA O OUVIDO PARA OUVIR




“Se treinamos nossa consciência, ela beija enquanto nos morde.”


Não, não foi em vão que Freud disse: “Seja qual for o caminho que eu escolher, um poeta já passou por ele antes de mim” ou lembrando Nietzsche: “A arte assume acessoriamente a tarefa de conservar o ser, até mesmo de dar um pouco de cor a representações extintas e empalidecidas, quando cumpre essa tarefa, tece um laço em volta de diferentes séculos e faz reaparecer os espíritos [...], mas pelo menos por instantes desperta mais uma vez o velho sentimento e o coração bate a uma cadência de outro modo esquecida.”
E acreditando no que foi dito, podemos dizer que a literatura não tem fronteiras, nela cabe o ser na sua totalidade: social, psicológica, moral, religiosa entre tantos outros aspectos.
Quanto a mim, não imagino a existência de uma porta que a literatura não possa bater. Não imagino a existência de uma mesa que não possa servir literatura aos que dela têm fome. Não imagino a existência de um só jardim onde a literatura não possa germinar.
Imagino sim, que ainda há emoção para sentir, e ouvidos para ouvir o enorme ruído da literatura mudando o homem.
E apesar de tantos esforços em tentar fugir, a literatura nos pega em uma das esquinas desta vida e nos diz da cegueira branca da qual, em tempos de pós-modernidade, somos prisioneiros por vontade, e estupidamente abatidos nos deixamos levar por ela, como nos prevenia o mago Saramago.
Mas se, por acaso, ou destino, fizermos da literatura uma aliada e a ela nos permitimos a total entrega, Cléo Busatto anuncia o próximo ato, quando as cortinas não mais se fecham e a cegueira se faz curada, a literatura, diz Busatto: "Acaricia e acolhe. Quando se leva a palavra para ouvintes disponíveis a recebê-la, ela se torna palavra-força."

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. p.65, 2005
_______________________. Humano, Demasiadamente Humano. p.126.
BUSATTO, Cléo. Práticas de oralidade na sala de aula. .p.16, 2010.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

UM, DOIS, TRÊS, QUATRO, UM DOIS, TRÊS, 43



Passado todo esse tempo, não desconheço a diferença entre o ser e o estar. To be or not be? E para mim não tem “ou”, porque eu sei onde eu estou e sei quem eu sou. Mas em mim doeu bastante esse aprendizado.
Trocar as roupas da pele pelas roupas da alma, pode ser coisa de louco, pode ser só um momento, mas ainda assim vou sendo louca sem escalas em cidades vizinhas da normalidade, para que seja um momento, mas um longo momento de conhecimento, de aprendizagem do que pede e quer ser a minha vida.
Mulher de 43 anos, estatura poética razoável, olhos cor de mel de abelha sem ferrão, fôlego de gato manso e um apetite de paz invejável.
Apaixonada por escritas tortas, casada e grávida de gêmeos...
Eu fui assim ontem, quando tinha quarenta e dois anos. E sou assim também hoje, nesse começo de quarenta e três anos. E fico feliz com o que ganhei hoje, a certeza de uma esticadinha na pausa da minha vida.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

MUITOS PRATICAM ESPORTE, EU PRATICO AFETO




Quem olha para fora sonha. Quem olha para dentro acorda. C.G.Jung

Fiquei muito tempo sem contato com o admirável mundo do psicólogo Carl Gustav Jung, o homem que me fez descobrir que dentro de mim tem lama e ouro.
Perdi muito tempo da minha vida não me conhecendo, mas as pedras de ouro que estão dentro de mim, começaram a ser garimpadas e lapidadas. E para tanto, precisei de algumas lições de Jung e de alguns sopros de sensatez e profissionalismo da Dra. Sâmia Rodrigues, psicóloga que me atende e me vê com o peso e a medida do ouro e da lama que o meu interior tem.
E foi assim que eu descobri que no fundo de tanta lama, escondia também algumas pedras de ouro, e eu trouxe, só depois de tanto tempo, as pedras de ouro para a superfície da lama.
Como fazer o ouro flutuar sobre a lama?
Esse é o meu mais novo segredo.
Muitos vão às academias cultuar o corpo do outro para tentar agradar sendo igual ao outro, pois que olham para fora e por isso, sonham sempre ser o que o outro, possivelmente, é na sua superfície.
Mas eu segui as linhas tortas desse princípio, entrei na contramão, e enquanto muitos praticam algum esporte, eu pratico afeto. Meu lado mais tendencioso é o da emoção, perdidamente descompensado da razão. Foi o diagnóstico da lama para o ouro.
E quando abri os olhos dentro de mim, eu adquiri o estranho hábito de cultuar a anima. Por isso pratico afeto, porque o afeto para mim é alimento que me fortalece enquanto pessoa, enquanto humana, enquanto mulher.
E foi assim que eu comecei a abrir e fechar os braços sempre que eu encontro quem amo. Eu sei abraçar tanto quanto o garimpeiro sabe garimpar. E reaprendi a lição de Jung. Hoje reconheço o belo de longe e emprestando os versos de Safo de Lesbos, posso até dizer:

Quem é belo
é belo aos olhos
- e basta.

Mas quem é bom
é subitamente belo.

domingo, 17 de outubro de 2010

DOS PERIGOS DA INUNDAÇÃO



Submersa. Coberta pelo mar da alegria. Vez por outra ria, em um só galope, para fugir do dever do discurso público.
Falar de amor pode doer, porque os desafetos, de outrora, não são apagados depois das tempestades. Eles ficam ali, em um outro canto, guardados, anunciando que a vida é um ciclo. Mas a alegria, em mim, prende o fôlego, com a mesma medida da tristeza. Eu sou dos extremos.
E a verdade é que eu fui parar naquela cena sem perceber o papel que me cabia. Por isso fui vestida de outra, não aquela dos cinco dias úteis da semana, não aquela que professa as teorias e fórmulas mágicas dos signos e seus significados, mas aquela que é só mulher e, que por isso, deságua nos encantos do amor.
Treze horas do dia quatorze, com intenções de vir a ser o dia quinze de outubro, a invasão das ondas mornas, já quase quentes de alegria tomavam conta desta mulher desprevenida, a mulher que por hora sou eu.
E ali estava acreditando ser só destinatária dos prazeres e dos rumores de aprendizes encantados pelas fórmulas secretas que o estudo da linguagem lhes oferecia. E apesar das braçadas que com avidez eu dava, aquelas ondas antes mornas, agora quentes me levavam ao fundo das alegrias aquosas do dia e só mesmo o chamado para o discurso público me fazia sufocar, perder o fôlego, rouquejar.
Trazida ao litoral, esqueço que jamais aprendi a nadar.
Dezoito horas e trinta minutos, as ondas voltam a bater sobre meu coração me arrastando novamente para as profundezas do que sou nos cinco dias úteis.
Sobre a minha mesa, uma rosa e um cartão escrito: Para o dia dos professores: um abraço um pouquinho demorado. Volto a me inundar na feliz alegria da profissão escolhida.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

DE NEGRUME O BESOURO BRILHA


Eu ouvi dizer que nos Estados Unidos tem homem-bomba. Eu ouvi dizer que pregos, bolinhas de ferro e pedaços de vidro são embalados junto com a massa explosiva e formam o modelo da jaqueta do homem-bomba. Eu ouvi dizer que a hemorragia causada pelos estilhaços mata mais que o impacto da explosão de um homem-bomba. Eu ouvi dizer que um homem-bomba acredita que está fazendo a coisa certa. Eu ouvi dizer que o homem-bomba pensa que veio ao mundo para limpar a terra da sujeira humana. Eu ouvi dizer que o homem-bomba avança contra a linha de batalha do inimigo. Eu ouvi dizer que os Estados Unidos são os principais fabricantes do C-4, o explosivo plástico que o homem-bomba veste em seu desfile final. Eu ouvi dizer que um homem-bomba consegue ferir pessoas em um raio de até duzentos metros. Eu ouvi dizer que o homem-bomba é também suicida, diz adeus em meio à multidão e saí da linha da vida. E de negrume o besouro brilha...
Eu ouvi dizer que na cidade de Feliz Lusitânia tem homem-poesia. Eu ouvi dizer que de dentro da sua jaqueta saem lesmas, saem facas de duas pontas, pescoço de galo esticado e um osso emendado. Saem ruas sem cor ou corola. Eu ouvi dizer que ele tem olho que tudo vê e quando morde, morde sem dente para a dor se fingir de não doer. Eu ouvi dizer que sendo manhã, noite ou tarde ele escreve para além do que lhe arde. E de dentro da sua jaqueta explode um grito, grito de não matar. Um grito que mais parece, um grito de acordar.

domingo, 3 de outubro de 2010

MAIS UM FILHO DE LAERTE



Dançávamos juntos a noite toda. Eu com meu vestido azul royal, cabelos ao longo das costas seminuas . Ele, com seu ar desconhecido por mim, trajava um smoking e sempre que me fazia girar no salão, a sua mão percorria as minhas costas repetidamente e com suavidade. Era como se ele soubesse que eu já fazia parte dele e quisesse me fazer entendê-lo como tal.
Todas as músicas pareciam ter a mesma nota e a sua mão persistia no pouso e repouso sobre a pele seminua das minhas costas. E do ir e vir que a sua mão fazia, ele tatuou na minha pele uma desconhecida identidade.
Fim do baile. Ele não se fazia mais matéria.
Invisível aos olhos, ele percorria todos os espaços dentro de mim e me dizia para acompanhar agora, a dimensão épica do meu novo enredo. Dar alguns passos ao alcance da espada e armadura, era a ordem dele agora querendo também ser minha.
Avanço montada em um enorme cavalo de madeira. Hoje eu sou Ulisses...

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

NEM ULISSES, NEM AQUILES.




Baseado em fatos reais, eu não nasci para ser o herói da minha história. Vez por outra, acordo na companhia de uma enorme sombra. Quando me viro, lá está ela, bem atrás de mim. E outras vezes, ela avança à minha frente. Apesar de se mostrar menor que eu, quando se põe à minha frente, eu sei que ela se faz pequena na superfície, e para além do que vejo, reconheço a sua textura. A sua substância primeira é o Medo, grande condutor do enredo dessa minha história.
E como ter feitos grandiosos, ser astuto se essa sombra, por vezes, se instala também dentro de mim?
O herói conhece o perigo e avança contra ele. E o resultado desse confronto lhe trará o bem-estar interior e os dias nublados lhe darão o verão e a primavera.
Baseado em fatos reais, eu conheço muito bem os dias de invernada e me acostumo facilmente com eles.

Eu não nasci para ser o herói da minha história.

domingo, 22 de agosto de 2010

CHECK-IN



Eu ando grávida de outros mundos,
de outras cidades,
de outras regiões
que não seja esta.
Esta que mastiga vorazmente
toda e qualquer delicadeza.
Esta que se perdeu dos valores
que marcam a existência humana.
Esta que distorce o que de fato viemos fazer
dentro deste imenso planeta.
Eu ando grávida da beleza
nos gestos dos que vivem em outros estados.
Eu ando grávida da cor da paisagem das outras regiões.
Eu ando grávida dos tons sonoros das vozes
dos que vivem em outras cidades que não seja esta.
Eu ando grávida dos que sabem lidar com os passantes
e respeitam as suas diferenças, os seus sotaques,
as suas dúvidas de localização.

Eu ando grávida de tudo o que deveria nos alimentar dia após dia:
Delicadeza,
Leveza,
Respeito,
Beleza,
Sutileza,
Bondade,
Montanhas,
Cachoeiras,
Ruas sinalizadas
Educação no trânsito,
nos restaurantes,
nos supermercados,
nos hotéis,
nas farmácias,
nas praças públicas...

Eu ando grávida de tudo o que me fez muito bem no meu tempo de viagem.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

UMA DOSE DE PROSA




Essas coisas de odor, cheiro forte ou música, dizem marcam muito a gente. A verdade é que ela sempre soube que o tempo poderia passar velozmente, ou até mesmo suavemente, mas o cheiro medido de cada estação ou rota do tempo, permaneceria na gaveta secreta da sua memória.
E se cumpria mais um ciclo. Acre, era quase uma criança. Assim como ela, ele pouco sabia da vida e do progresso. Suas máquinas eram um singular jipe que pelo seu cheiro forte embrenhado na pele e cabelo dos seus passageiros acenava para o mundo dos homens pensantes. Homens capazes de criar a velocidade! Pensava ela delirantemente:
_ Hei de voar com asas de ferro e esse cheiro se diluirá em nome das grandes descobertas !
Não muito além, o tempo das grandes descobertas chegou. Com ele, o vôo de asas de ferro, o caminho na linha de ferro, o ferro cortando mares, o ferro perfurando estradas, o ferro desmistificando o homem.
No Acre também há homens de ferro, que acordam, trabalham e voltam a dormir e a vida apenas se reduz a isso: homens de ferro.
Mas ela, por sua vez, diante do homem de ferro, negou os desejos que mantivera na infância, a renúncia ao cheiro do jipe em viagem e se dizia não haver suplicado o progresso:
_ Eu, não cumpro a pena dessa sina, sempre quis ser interiorana... O destino é que me trouxe para essas bandas !
Enganar o outro, pode ser possível e até a si mesmo, mas o tempo? Esse nos marca as decisões na pele, como tatuagem. Não há para onde fugir.
Do jipe hoje pouco se ouve falar. Hoje se ouve apenas o rugir dos Subarus e Pageros e Sena Madureira é o pomar de uma fazenda qualquer.
E das asas de ferro, da linha de ferro, da fumaça dos ferros na estrada ou até mesmo na farda do homem de ferro, há ainda muito longe o fino fio de lembrança da viagem de jipe do Acre.

PASSEIO BIBLIOGRÁFICO

Com Giselle Ribeiro



Não vou aqui definir a poesia apostando no afastamento do leitor. Não vou falar de métrica, formas, rimas ricas ou rimas pobres. Prefiro falar de respiração, alimento, sangue, vida.
Entender o que representa respirar, esse é o grande desafio. Olhar, perceber o que todos deixam escapar: a respiração é a poesia.
A poesia é uma casa sonora. E o que é uma casa, senão um espaço dividido entre outros espaços: sala, quartos, cozinha, banheiro, varanda e quintal. Assim é a poesia, ela é liberdade sob vários sons, porque ela ouve o mundo e o guarda em seus secretos compartimentos produzindo novas formas que serão cantadas pelo mundo e para o mundo.
Agora vem a mim, o ímpeto de crer que a poesia não é mais uma casa sonora. Ela é todo um País, com seus rios e afluentes, com suas regiões frias e quentes. E sua capital, é a Literatura.
Das visitas tantas que faço por esse País, trago em mim fotografias reveladas pelo meu olhar. Em Manoel de Barros, cidade de muitos portos ancorei meu peito esperançoso. Essa cidade tem seus encantos, um emaranhado de palavras loucas por liberdade, sigo essa trilha cada vez que uma dor bate à minha porta.
Fujo para Hilda Hilst quando o inverno se faz em mim, quando meu olho esquerdo estremece, quando o menor toque em mim, tem cor de agressão, ameaça, invasão... Corro horas sobre o asfalto quente das palavras desta cidade até chegar ao seu, e ao meu ponto extremo.
Tenho uma coleção de postais da cidade mais visitada, Carlos Drummond de Andrade. A cidade de muitos bosques e labirintos. Dos bosques mais antigos guardei as pedras no meio do caminho. Dos bosques mais modernos, trago comigo flores da primavera. Não sei exatamente o dia e a hora da colheita, mas sei que era manhã de setembro.
Há uma cidade feita só de mistérios, o ar dessa cidade já anuncia: em Clarice Lispector há brisa mansa capaz de entrar com suavidade em cada visitante e bem dentro dele formar um vendaval. E os rios de Clarice Lispector banham a mente dos visitantes para que toda a construção da novidade se faça nas idéias dos que por ela passam.
Um, dois, três, quatro ou até mesmo trinta de julho de dois mil e dez. Todos os dias é lícito repousar os olhos de contemplação nas cidades deste meu bom País. Atraco minha âncora, neste mês solar, na bela cidade Paulo Vieira, e meus olhos alucinados crescem e diminuem com a chegada em cada parada-página. Ponto turístico número dezenove: Memórial ao fim da infância e ponto turístico número trinta: Da guarda, paradas obrigatórias. Anuncia a voz do guia.
É esse o meu País, e nele há mais cidades que por hora não ouso lhes contar...